domingo, 27 de fevereiro de 2011

Inscrições sobre a cidade

Um dos melhores retratos do que podemos chamar de palimpsestos urbanos é o trabalho do artista plástico Alexandre Orion. Boa parte do seu trabalho está em utilizar a cidade como suporte para suas manifestações que por vezes soam como um protesto silencioso.

Este é o caso de “Ossário”, um grafite às avessas no qual a limpeza da fuligem deixada pelos carros é que revela a imagem da morte que jaz lado a lado com nossa consciência urbana. O texto da omissão, que escreve a cada dia mais um capítulo da apropriação predatória do espaço urbano, dialoga com uma intervenção efêmera que levanta questionamentos e tenciona a informação existente que, de tão banal já não salta mais aos olhos.




O signo daquilo que qualifica a cidade como cinza adquire novos significados. A informação icônica que apenas sugere uma nova leitura permite que a narrativa da cidade poluída e cinzenta passe à fabulação, um processo que acontece sempre no trânsito entre a informação como dado e a percepção como relação, o que implica uma ampliação dessas imagens e seus significados num processo associativo que amplie também o espectro das possibilidades cognitivas de onde emerge a produção do lugar.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Estava assim há dias, tentando desvendar um certo mistério das coisas. Na verdade, começava a perceber que nada havia de misterioso. O que havia era apenas o despertar da sensibilidade para as coisas que aconteciam a despeito de sua vontade e que podiam ou não ser vistas a olho nu.
Agora parecia uma criança a se perguntar por quê? Como? Quando? Quem? E todas essas perguntas que pretendem revelar tudo o que parece sem explicação. Achava que a sensibilidade era apenas um exercício que valia à pena quando se busca viver sem se contentar com o que já é dado, pronto e acabado.
Era assim como uma espécie de tentativa de encantamento pela vida.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

É sempre noite no metrô (Bruno Zeni)



É sempre noite no metrô, mesmo quando se
desce pelas escadas rolantes com uma música na
cabeça, que é como continuar a rolar no embalo do
som, caminhando, ritmado, carregando o dia lá de fora.
É sempre o mesmo breu e um mesmo efeito de
imagens refletidas nos vidros, umas luzes que
correm ao longo do túnel.
A música, boa música na cabeça e as pessoas que vão
ficando menores na plataforma quando o trem acelera.
Demora um pouco para se perceber que o escuro dura.
Uns olhos que se fecham lentamente: ela pousa as
pálpebras no lugar e volta a abrir os olhos e faz assim
algumas vezes com um sorriso nos lábios pintados
de vermelho.
A chegada do trem à estação. Bom quando o trem
chega àquelas estações abertas, acima do chão.
Um pouco de ar, um pouco de luz. Dá pra ver a cidade
(e a cidade se toca da existência do metrô).
O jogo de reflexos nos vidros da estação faz com que
um poste de luz se encaixe no corpo de um homem.
De pé, dentro do outro vagão. Seu corpo é poste e
fiação, resistência e ligações clandestinas.
Os grandes cílios parecem que ondulam. O lápis no
olho, a sandália no pé, as pernas cruzadas, a música:
cruza e descruza as pernas e o sorriso está lá.
Tem uma bolsa no colo.
A cabeça se equilibra acima do poste: o homem no
metrô, o poste lá embaixo na rua, unidos no vidro.
O trem acelera dentro do túnel de novo.
Um grupo de garotas conversa sobre os meninos do
cursinho. Os olhos de um velho de pernas cruzadas
escorrem de visgo. O nervo, o vinco e o visgo. Desculpe
incomodá-los, mas venho humildemente pedir uma
ajuda, uma contribuição, que a situação não está fácil,
são as crianças na escola e os velhos doentes...
As pessoas dormindo. Duas senhoras de pernas e pés
inchados. Os office-boys e suas pastinhas. Os caras
de terno. A música na cabeça. A escuridão do túnel.
A música, que é um lance que faz pirar mesmo. Ficar
no embalo da música. Que pára quando o metrô chega
na estação.
O barulho dos freios. As portas se abrem. Aquela gente
toda saindo dos vagões.
Todos os sons (os que existem e os que não). A música
volta é como se ela tivesse só abaixado um pouco
aqui dentro. As escadas rolantes – subindo, subindo,
em velocidade constante – e de novo o dia, do lado
de fora, que já dá para vê-lo surgir. A luz. Caminhando,
ritmado. O som no máximo. (Zeni, 23/24)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

flanerie às avessas



São Paulo é assim: uma cidade fragmentária, com suas diversas imagens que reúnem a diversidade e o que dela decore – os contrastes. Essa diversidade está inscrita na mistura de sotaques, no exotismo dos sabores em seus mais variados restaurantes, na grandiosidade e beleza de seus templos religiosos, na popularidade do comércio da Rua 25 de Março em contraposição à elegância da Rua Oscar Freire, na imponência de seus edifícios com vista para as favelas, no cinza dos prédios que tentam engolir seus belos parques arborizados.

É neste cenário também que se pode observar diferenças que, de tão banais, já não salta aos olhos dos que circulam por ali desatentos: mendigos em meio a ternos e tailleurs em pleno coração financeiro e empresarial da cidade.

São esses personagens estranhos ao ambiente que ditam outro tempo e forma de apropriação do espaço que fazem lembrar o “homem na multidão” de Edgar Allan Poe. Diferente do flaneur de Walter Benjamin, que era um fisionomista da cidade, procurando conhecê-la pelos sentidos através da montagem de seus índices existenciais, o homem da multidão torna-se anônimo e sem identidade em meio às perturbações causadas pela cidade e pelo número elevado de pessoas convivendo no mesmo espaço.

Não se trata, neste caso, de caminhar sem objetivo ou intencionalidade permitindo a construção de textos a partir de elementos não-verbais, trata-se, sim, de uma flanerie às avessas que os obriga a não ter propriamente um espaço, mas construir um lugar sempre móvel e passageiro. É preciso levar consigo apenas o essencial, já que para quem carrega a vida nas costas, a casa se constrói dentro.