quinta-feira, 10 de junho de 2010

Da retirada

"- Senhor meu - respondeu Sancho - retirar-se não é fugir; nem no esperar vai prova de sisudeza quando a coisa é mais perigosa que bem figurada. Próprio dos sábios é o pouparem-se de hoje para amanhã; e saiba Sua Mercê que um ignorante e rústico pode mesmo assim acertar uma vez por outra com o que chamam regras de bem governar. Portanto não lhe pese de haver tomado o meu conselho; monte no Rocinante, se pode, ou eu o ajudarei, e siga-me, que me diz uma voz cá dentro que mais úteis nos podem nesta ocasião os pés que as mãos".
(Cervantes)

Ao ler o extrato acima, por algum tempo fiquei pensando no post sobre a Impermanência. Lá falei de uma espécie de “herança genética” da inconstância que circula pela minha família fazendo-nos mudar muito mais que o necessário.

Se, por um lado, essas mudanças excessivas podem ser vistas como algo nocivo e, até certo ponto pejorativo, por outro, pode ser um sinal de sagacidade e inteligência. Neste sentido, mudar torna-se fruto da coragem (ou da falta dela) e da sensibilidade. Ou seja, a primeira diz respeito à constatação de que não se consegue seguir adiante por medo, por insegurança, por falta de perspectiva ou porque há um caminho tão melhor do que o que se está que é preciso encher o peito e fazer um corte brusco.

A segunda exige a habilidade de perceber (e ouvir a “voz cá dentro”) que é tempo de esperar ou até mesmo adequar um pouco a direção do olhar, para poder continuar. O comando para os pés, andar para outro lado ou parar, faz-se mais perspicaz do que a habilidade de continuar esculpindo algo que, se sabe, não é mais tempo, não resultará em bela forma.

Seja qual for o motivo, o ato de mudar está ligado ao sentimento de encontrar alegria no percurso, não apenas na chegada, ou como bem disse Caetano: “encontrar a mais justa adequação, tudo métrica e rima e nunca dor...”.

Acho que meu coração fica mais tranquilo por existir também esta outra leitura.