domingo, 20 de março de 2011

A cidade do lixo

“...como o filósofo diz: ‘Em Raissa, cidade triste, também corre um fio invisível que, por um instante, liga um ser vivo a outro e se desfaz, depois volta a se estender entre pontos em movimento desenhando rapidamente novas figuras de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem mesmo sabe que existe’”. (Ítalo Calvino)


Dentro de uma cidade há sempre outras cidades, algumas existem apenas na memória, como narrou Ítalo Calvino, outras são imaginadas. Mas também existem aquelas invisíveis - ou porque não temos delas conhecimento, ou porque fazemos questão de escondê-las. Este é o caso de Jardim Gramacho, o maior lixão do mundo e tema de dois belos documentários.

Jardim Gramacho é o retrato de uma cidade invisível, excluída. É para lá que vão todos os restos de coisas, de pessoas. Tudo o que não se usa, tudo o que não serve, tudo o que não se quer por perto. Foi mais ou menos assim que o definiu Vick Muniz, idealizador do documentário Lixo Extraordinário. Mostrando com sensibilidade e delicadeza uma realidade miserável, Vick Muniz entrou com cuidado na vida dos catadores de lixo buscando fazê-los descobrir novas possibilidades. Embora vivendo na pobreza, os personagens deste documentário têm em comum alguma alegria vinda, talvez, de alguma esperança de transformação.



Entretanto, esperança não é a palavra de ordem para todos os que vivem ali. Em Estamira para todos e para ninguém, Marcos Prado mostra uma mulher (a própria Estamira) já maltratada pela vida no lixão que diz logo no início: “Coitado do Brasil!”. Entre uma espécie de loucura e uma lucidez cortante, Estamira percebe as diferentes cidades que coexistem uma na outra: “O espaço inteiro é abstrato. O que se vê lá em cima é só reflexo do que está aqui embaixo.”



O fio que os liga está na relação que as pessoas criam com o espaço – mesmo em meio à dureza e à dor, transformam-no em lugar de trabalho, de sustento, de amizade, de convívio, de música, de alguma dignidade.